sexta-feira, 5 de julho de 2024

A resiliência de meu pai.

 

Panair do Brasil! As asas que não foram quebradas

Lockheed L-049 Constellation pintado nas cores e marcas da Panair do Brasil no Museu TAM em São Carlos (SP).

    Estávamos no ano de 1965, mais precisamente no dia 10 de fevereiro, uma quarta-feira. Eu e minha irmã ainda estávamos de férias escolares, e meu pai estava retornando ao trabalho após as suas férias. Vivíamos em um apartamento de dois quartos, alugado, em Jacarepaguá. Meu pai acabara de comprar móveis novos, e eu brincava com o trenzinho elétrico que ele havia trazido de Manaus, juntamente com uma calça Lee que tinha até joelheiras.

    A situação do país estava muito ruim, pois ainda sentíamos o amargor recente do golpe militar, e as perspectivas não eram boas. Minha mãe vivia preocupada com meu pai, pois ele era envolvido com questões do sindicato dos aeroviários e era totalmente contra o golpe militar, claro.

    Neste dia, meu pai demorou a retornar do trabalho, mas como a demora era normal devido à sua profissão de mecânico de avião, não estranhávamos. Lembro que ele chegou bem tarde, cabisbaixo e triste, e chamou minha mãe para conversar. Lembro de frases como:

- E agora, o que vou fazer? Aluguel, despesas domésticas, os meninos?

- Como eles fizeram isso? Como pode acontecer?

- Todo mundo perdeu o emprego.

    Meu pai era um dos cinco mil funcionários da Panair do Brasil que perderam o “chão” após a cassação do certificado de operação, uma falcatrua política/jurídica que envolveu também a Varig, conforme documentário exibido na Globonews em 4 de novembro de 2017. Fatos que permeiam, até hoje, os Poderes Tupiniquins que trabalham a serviço do “Poder” de plantão.

   O que ocorreu com a Panair do Brasil foi algo inusitado e um fato totalmente desconhecido, ou escondido, da maioria da população brasileira. Quero crer que a galera que fica conclamando uma nova intervenção militar também desconheça o fato, ou pior, concorde.

    Resumidamente: A Panair do Brasil era a maior empresa aérea da América Latina, dona de cinco aeroportos no Brasil, a única empresa que levava assistência social aos povos indígenas da Amazônia através dos aviões Catalina, tinha escritórios na Europa e nos EUA, voos nacionais e internacionais regulares, dona de uma avançada oficina de manutenção de motores, a CELMA, e ainda fornecia a infraestrutura de telecomunicações para a Aeronáutica. Uma empresa de ponta nas terras tupiniquins. Teve sua operação cassada em 1965, sem nenhuma fundamentação financeira ou jurídica, tanto que em uma ação movida contra a União, finalmente no ano de 1984, o STJ declarou que a falência da Panair fora fraudulenta e a União deveria ressarcir a Panair. Isto nunca ocorreu.

    Os efeitos desta perniciosa ação, inconsequente e criminosa, afetaram a vida de cinco mil famílias de pilotos, aeromoças, mecânicos e demais funcionários; que perderam de um dia para o outro seus empregos sem entenderem o que estava ocorrendo. Alguns até cometeram suicídio. Quanto à nossa família, e deve ter ocorrido algo bem semelhante com as demais, cito alguns momentos:

- Meu pai, para conseguir o pão nosso de cada dia, foi trabalhar em uma oficina mecânica de automóveis no Jardim Botânico, ganhando quatro vezes menos.

- Meu pai foi à loja onde havia comprado os móveis e conversou com o dono sobre sua situação, dizendo que não poderia pagar a prestação dos móveis. O dono da loja disse: "Não se preocupe, fique com os móveis e me pague quando puder."

- Um mês após a “demissão” de meu pai, ele chegou em casa preocupado, pois não teria dinheiro para arcar com as dívidas do mês. Ao falar com minha mãe, ela disse: "Não se preocupe, pois o dinheiro do teu décimo terceiro e férias, eu guardei, não foi gasto." (nesta época meu pai pegava uma parte do dinheiro que recebia e entregava para minha mãe administrar os gastos com alimentação, casa, etc)

- Fui algumas vezes com meu pai apanhar nas instalações da Panair a cesta básica que foi doada aos funcionários por algum tempo.

- Meu pai, como outros trabalhadores da Panair, foi a julgamento civil/militar. No dia do julgamento, não sabíamos se ele voltaria para casa. Durante a audiência, o juiz perguntou a Paulo Sampaio, presidente da Panair:

- O senhor sabia que em sua companhia havia uma célula comunista?

Ele respondeu:

- Meritíssimo, em nossa companhia não tem comunista, tem cinco mil famílias trabalhando em prol de uma empresa.

Os funcionários da Panair foram absolvidos.

- O dono do apartamento onde morávamos pediu o imóvel, e ficamos sem ter para onde ir. Meu padrinho, tio, irmão de meu pai, que também era mecânico de avião na Panair e um ser humano fantástico, nos acolheu em sua casa. Uma casa de quatro quartos onde moravam cinco pessoas – meus tios e primos – e fomos nós quatro também morar lá por dois anos.

    Os anos passaram, muitos outros desafios foram superados, e hoje estamos aqui. Meu velho pai tem 99 anos e minha mãe 98, estamos bem.

    “Todo mundo, quando lembra da ditadura, lembra com razão da tortura, das mortes, da violência contra os partidos políticos, mas pouca gente presta atenção na violência jurídica. A violência jurídica não sai sangue, mas é tão grave quanto a outra violência. A violência jurídica é disfarçada, ela se dissolve, as pessoas não acompanham.” – Artur da Távola.

    Eu, meus pais, a Lu, os Ths mais velho e o do meio, assistimos o documentário sobre a Panair do Brasil, pela Globo News, mas ele também está disponível no YouTube, no link abaixo. Convido vocês a também conhecerem a Família Panair.

    Panair do Brasil, um exemplo de gestão e empreendedorismo, que na época (há mais de 50 anos) “incomodava” muita gente.

https://www.youtube.com/watch?v=e1A9W_9xSts