sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O solo


Logo após de ler meu post sobre a morte, um amigo ligou fazendo as seguintes considerações:
- também gostei muito do livro do Saramago . No teu post esqueceste ou omitiste o que considero o melhor no livro que é o último capítulo.
- é verdade, mas a omissão foi proposital, não queria falar sobre o mais inusitado da trama com receio de cortar o barato de quem ainda vai ler .
- e vai ficar assim? Usa sua “criatividade”, não vais dar uma palhinha sobre o the end?
- vou pensar .
Bem , sem querer dar uma de “o mocinho morre no final”, que na realidade não é o caso, vou complementar o post com :
O final é surpreendente pois a morte se rende ao mais nobre de nossos sentimentos, e este fato é descrito de forma magnífica, algo que só um POETA poderia fazê-lo.
Segue um trecho da página 192, que considero belíssimo.
“...O violoncelista começa a tocar seu solo como se só para isso tivesse nascido. Não sabe que aquela mulher do camarote guarda na sua recém-estreada malinha de mão uma carta de cor violeta de que ele é destinatário, não o sabe, não poderia sabê-lo, e apesar disso toca como se estivesse a despedir-se do mundo, a dizer por fim tudo quanto havia calado, os sonhos truncados, os anseios frustrados, a vida, enfim. Os outros músicos olham-no com assombro, o maestro com surpresa e respeito, o público suspira, estremece, o véu de piedade que nublava o olhar agudo da águia é agora uma lágrima. O solo terminou já, a orquestra, como um grande e lento mar, avançou e submergiu suavemente o canto do violoncelo, absorveu-o, ampliou-o como se quisesse conduzi-lo a um lugar onde a música se sublimasse em silêncio, a sombra de uma vibração que fosse percorrendo a pele como a última e inaudível ressonância de um timbale aflorado por uma borboleta. O vôo sedoso e malévolo da acherontia atropos perpassou rápido pela memória da morte, mas ela afastou-o com um gesto de mão que tanto parecia àquele que fazia desaparecer as cartas de cima da mesa na sala subterrânea como a um aceno de agradecimento para o violoncelista que agora voltava a cabeça em sua direção, abrindo caminho aos olhos na obscuridade cálida da sala. A morte repetiu o gesto e foi como se os seus dedos finos tivessem ido pousar-se sobre a mão que movia o arco. Apesar de o coração ter feito tudo quanto podia para que tal sucedesse, o violoncelista não errou a nota. Os dedos não tornariam a tocar-lhe, a morte tinha compreendido que não se deve nunca distrair o artista em sua arte..... José Saramago”
E como me lembrou o grande Paulinho, em um e-mail, “a música é o silêncio em movimento”, segue o link de uma canção que muito gosto. Para vocês , para Saramago, para o violoncelista e para morte.
http://www.youtube.com/watch?v=4RWMzcRgYsc

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